O pedaço da coxa de um anjo: Aventura em Istambul
"É um negócio que você vai percebendo aos poucos. Quatro ou cinco no aeroporto, mais um no restaurante, uns tantos no ponto de ônibus, dois na mesquita, três no barco, um te observando enquanto você come um sanduíche, outro te encarando na esquina, outro no café, na praça, na janela do bar, outro no museu, mais alguns no metrô, e outros, e outros. Então você se dá conta: Istambul é infestada de gatos".
"Eu, que nunca tinha passado por nada parecido no Brasil, não senti o golpe de 64 na pele e apenas sabia dos horrores por meio de livros e imagens, achava perturbador ouvir homens e mulheres de todas as idades falando não só que morreriam pela pátria, mas que gostariam de tê-lo feito. O que eu teria feito se fosse o meu país? Meus familiares, meus amigos? Iríamos de mãos dadas para a rua enfrentar tanques de guerra e soldados armados dos pés à cabeça? Iríamos?"
"Os vídeos da Turquia de um ano antes, dos momentos entre o começo do golpe até a população tomar as ruas e impedir os militares, eram assombrosos. Caças dando rasantes sobre a cidade, atirando na população; homens armados bloqueando as pontes e abrindo fogo contra os carros; bombas explodindo no parlamento; militares chutando as portas de vidro da mesma sala em que eu trabalhava naquele instante, apontando fuzis e mandando todos saírem; pessoas gritando, correndo, sangrando no meio da rua; tanques de guerra avançando sem trégua. Aquilo havia acontecido um ano antes, não era inventado. A cidade foi atacada, pessoas morreram e eu precisava ajudar a contar essa história".
"Era uma Istambul ou duas? Um lugar indefinido? Uma espécie de limbo? Os cartões postais mais famosos estavam no lado europeu, mas lugares charmosos escondidos dos turistas ficavam na parte asiática. A maioria das pessoas trabalhava na Europa, mas ia se divertir na Ásia. O estádio do Fenerbahçe era na Ásia, já os do Besiktas e Galatasaray, na Europa. E o Bósforo? O estreito que dividia tudo era europeu ou asiático?"
"Havia um buraco intransponível. Saber que eu estava ali de passagem, praticamente um turista (olhando, para depois ir embora dormir num hotel com chuveiro quente e cama de rei), parecia o cúmulo da hipocrisia. Era quase impossível me aproximar das crianças, me sentia um completo farsante. As pessoas em volta com câmeras, usando camisetas da TV. Nada passava naturalidade, a situação toda me embrulhava o estômago".
"Andamos mais um pouco, até uma área sem casas. Alguns moleques vieram com uma bola e, quando me dei conta, estávamos em seis ou sete, formando um círculo e fazendo embaixadinhas. Tocávamos um para o outro, tentando manter a bola no ar, nos divertindo com os erros e aplaudindo as jogadas de habilidade. Foi o único momento que tive de conexão com aquelas crianças, a única vez em que estive confortável com elas – e imagino, elas comigo. Mais uma que devo ao futebol".